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Projeto Corredor Vale da Trave - Moitas Venda - Parte II
17 de Dezembro de 2022

Ribeiro, José 1, Rodrigues, Paulo 1,2,3

  1. Grupo de Espeleologia e Montanhismo, Rua General Pereira de Eça, nº30, 2380-075 Alcanena
  2. Núcleo dos Amigos das Lapas Grutas e Algares 
  3. Comissão Científica da Federação Portuguesa de Espeleologia,Estrada Calhariz de Benfica, 187, 1500-124 Lisboa 
Email de correspondência: paulor2005@yahoo.com

Introdução

Independentemente da pandemia, da guerra e de todos os “males” que nos possam atingir, nada nos demove, continuamos a trabalhar e a divulgar os nossos trabalhos a toda a comunidade espeleóloga e a quem mais queira ver!
 
Apesar de também estarmos a trabalhar noutros projetos, tais como Almonda Novo, Algar da Lomba ou Algares do Cabeço dos Alecrineiros, entre outros, sempre que podemos aqui regressamos onde sempre nos recebem tão bem.
 
Nesta publicação apresentamos os algares onde se desenrolaram os últimos trabalhos, a saber: Algar da Marradinha II e Algar dos Latões.
Figura 1 - Zona típica no Planalto de Santo António (Foto: Paulo Lopes - GEM)
Figura 2 - Imagem de satélite com implementação dos algares já topografados.
Algar da Marradinha II
Já muito se trabalhou e escreveu sobre este algar, um “clássico” na nossa comunidade.
Como espeleólogo tive a minha primeira visita a esta bela cavidade há mais de duas décadas. E foi precisamente esta uma das grutas que me fez continuar a ser espeleólogo e a amar tanto este “misto” de desporto, ciência e aventura.
Figura 3 - Entrada do Algar da Marradinha II (Foto: Rui Ferreira - GEM)
Figura 4 - Zona da Galeria Tubiformes (Foto: Teresa Cardoso - GEM)
Figura 5 - Zona do Meandro Esquecido, marcas de pisoteio (Foto: Marco Matias - GEM)
Observamos que a gruta apresenta em zonas de passagem muitas marcas de pisoteio e algumas formações partidas, fruto, na minha modesta opinião, de desobstruções ali efetuadas há muito, não sendo alheio o facto de, a partir da profundidade de 40 metros, a gruta ter muito sedimento acumulado, nomeadamente argila. Com o conhecimento que temos da cavidade, esta simplesmente não recuperou, possivelmente pelo facto de chover cada vez menos.
Falando por mim, pelo GEM, e porque não pela Comissão de Ensino da Federação Portuguesa de Espeleologia (F.P.E.), que define as regras de formação para todas as associadas, qualquer espeleólogo que receba formação de Nível II para poder participar em atividades de grupo, tem como uma das missões, se assim lhe podemos chamar, a preservação da cavidade em exploração. Se bem que por vezes há zonas em que é impossível não pisar minimamente, a regra é pisar apenas o mesmo local.
Em zonas novas em que o chão é calcítico, por norma retiramos o calçado e roupa exterior, como demonstra a Figura 6.
Figura 6 - Zona das Salas Suspensas (zona nova) (Foto: Vitor Toucinho - GEM)
Figura 6 - Zona das Salas Suspensas (zona nova) (Foto: Vitor Toucinho - GEM)

Topografia do Algar da Marradinha II

Olhando para a topografia existente e conhecendo a cavidade, colocámos mãos a obra pois muito havia por fazer. Isto, atenção, sem desvalorizar o trabalho topográfico conhecido por todos (imagens em baixo). Pois na época que foi feito, pelo grupo Sub Terra de F. Canais e J. Fernandes (penso que entre outros) sendo publicada no livro “Lapas e Algares da Serra de Santo António”, com os equipamentos que usavam fizeram um trabalho fantástico.
Figura 7a - Planta do Algar da Marradinha II (grupo Subterra)
Figura 7b - Perfil desdobrado do Algar da Marradinha II (grupo Subterra)
A topografia do Algar da Marradinha II foi efetuada com equipamento 100% digital, um medidor a laser com bússola incorporada (Disto X310 da Leica) em conjunto com um P.D.A.
 
Para elaborarmos a nova topografia foram realizadas 10 saídas, sendo efetuadas 302 estações topográficas. Ao todo foi feita uma poligonal com 1071m, sendo o seu maior desnível em relação à entrada de 73m. Muito trabalho onde também acrescentámos um pouco mais ao conhecimento do algar.
Figura 8 - Zona da Sala dos Cristais, trabalho topografico (Foto: Rui Ferreira - GEM)
Muitas horas de trabalho de “laboratório” e eis uma nova topografia, com zonas já conhecidas que não faziam parte da topografia existente e uma nova zona.
 
A topografia foi projetada para folha A3 (planta e perfil), pois a cavidade é muito rica, percebendo-se assim melhor o detalhe.
Figura 9a - Planta do Algar da Marradinha II
Figura 9b - Perfil desdobrado do Algar da Marradinha II

Geologia do Algar da Marradinha II

Enquadramento

O Algar da Marradinha II desenvolve-se na formação dos Calcários Bioclásticos do Codaçal do andar Batoniano do período Jurássico. As camadas localmente são subhorizontais apesar de, segundo a Folha 27-A da Carta Geológica de Portugal à escala 1:50000, (Manupella, et al 2000), essas camadas terem uma atitude aproximada SW-NE com uma inclinação de 10º para SE.
Figura 10 - Zona da Sala Grande (Foto: Dayara Jesus - GEM)
Figura 10 - Zona da Sala Grande (Foto: Dayara Jesus - GEM)
Figura 11 - Zona entre Sala dos Cristais e Galerias Tubiformes (Foto: Teresa Cardoso - GEM)
Figura 11 - Zona entre Sala dos Cristais e Galerias Tubiformes (Foto: Teresa Cardoso - GEM)

Controlo estrutural

O desenvolvimento lateral da cavidade é sobretudo E-W com alguns ramos de direção aproximada SW-NE, sem aparente relação com a atitude das camadas, sugerindo um controlo da cavidade preferencialmente por fraturas.

Sedimentos

A gruta apresenta-se fortemente sedimentada com abundante cortejo litoquímico (estalactites, estalagmites, colunas, gours, mantos estalagmíticos) bem como sedimentos detríticos com destaque para as argilas abaixo dos 40m de profundidade. A cavidade apresenta muitos blocos, grande parte deles já cobertos por concreções, resultante do abatimento dos tetos e paredes.
Figura 12 - Zona do poço -49, fortemente sedimentada (Foto: Paulo Lopes - GEM)
Figura 13 - Zona de entrada com marmita de tecto (Foto: Rui Ferreira - GEM)
Génese
A cavidade apresenta cúpulas e vagas de erosão indicando uma origem da gruta em zona freática segundo a definição de Bögli, 1980. A cavidade ter-se-á formado na zona freática do carso tendo posteriormente passado para a zona vadosa inativa, segundo a definição do autor anterior. A gruta apresenta-se atualmente no estado senil (Bögli, 1980).
Uma análise do perfil da gruta revela que as galerias se prolongam de modo grosseiro entre os 5m e 55m de profundidade, a que corresponde uma cota entre os 243m e 193m. O poço que sai da Galeria das Palhinhas e se prolonga até aos 73m de profundidade é a zona mais profunda da gruta, representando possivelmente um testemunho da descida do nível de base local, com as águas que circulavam na gruta a abrirem um poço que lhes permitisse aceder a maior profundidade. A cota no fundo deste poço é de 175m.
Figura 14 - Poço final (Foto: José Ribeiro - GEM)
Figura 15 - Base do poço final (Foto: José Ribeiro - GEM)
O nível de água subterrânea que permitiu a formação do Algar Marradinhas II, bem como do Algar do Zé do Braga, Algar das Couves e Algar dos Latões situadas mais a SW e Algar das Cotovias a SE, estaria a uma cota entre aproximadamente os 250m e 190m (será natural ter apresentado variações sazonais). As várias grutas fariam parte de um antigo coletor que ter-se-á formado quando o nível de base estava mais elevado que o atua. Com a descida do nível de base ou subida tectónica dos terrenos o coletor foi abandonado pela circulação de águas. Com a perda de sustentação terão ocorrido abatimentos que seccionaram o coletor, com posterior cobertura por concreções disfarçando a origem da cavidade. Com base na cota do fundo do poço da Galeria da Palhinha o novo nível de circulação de águas subterrâneas estaria a uma cota inferior a 175m. Curiosamente o Covão do Feto, depressão situado a Este do corredor onde se situam estas grutas, desenvolve-se entre os 190m e os 147m, não sendo de excluir uma relação entre o Covão do Feto e estas grutas.
Figura 16 - Zona do Meandro Esquecido, tecto (Foto: Rui Ferreira - GEM)
Figura 16 - Zona do Meandro Esquecido, tecto (Foto: Rui Ferreira - GEM)
Conclusão
É de facto um algar fantástico, qualquer espeleologo com formação, na sua existência, devia conhecer uma cavidade de tal beleza e com tanto para ensinar e em diversas áreas científicas. Por exemplo, o algar está cheio de vida de diversas formas e em vários locais.
Ao topografarmos, verificámos as várias aberturas que nos vão aparecendo para que a topografia fique o mais completa possível. Há muito que conhecíamos aquela janela lá em cima, quando se desce o poço de 17m por detrás da pequena sala de entrada. Ouvimos não poucas vezes “já lá se foi” e “aquilo não tem nada”. Bom, deu trabalho a equipagem daquela parede, mas lá fomos e valeu a pena!!!
Acrescentámos conhecimento a quem participou e à própria cavidade. Aliás, cada vez mais um espeleólogo formado deve ser visto pelas entidades deste país como uma “alavanca” para diversas áreas no que diz respeito à natureza cavernícola, se não corremos o risco da perca de conhecimento e até de futuras gerações de espeleólogos.
Figura 17 - Entrada para as Salas Suspensas (Foto: Vitor Toucinho - GEM)

Algar dos Latões

Este fica mesmo ali ao lado do local onde por norma estacionamos os carros. Já estava referenciado e existe uma topografia publicada no livro “Lapas e Algares da Serra de Santo António”. A entrada é muito bonita com bastante vegetação autóctone com real destaque para os medronheiros.
Figura 18 - Entrada do Algar dos Latões (Foto: Paulo Lopes - GEM)
É um algar com muita vida, principalmente no cone de dejeção na base do poço de entrada, onde abundam as salamandras, sapos e até os tritões.
Figura 19 - Zona envolvente com jovens espeleólogos (Foto: Vítor Amendoeira - GEM)
Figura 1 – Algar dos Latões, lixo retirado e trazido para a superfície
Figura 20 - Parte do "ferro velho" que ali se encontrava (Foto: Paulo Lopes - GEM)
O Algar dos Latões agora já não tem latões pois no início dos trabalhos neste pequeno algar foi fácil perceber a quantidade de “ferro velho” que ali se encontrava, fruto de outros tempos e de outras mentalidades, acreditamos nós.
 
Assim, colocámos mãos à obra e com o apoio da Câmara Municipal de Alcanena e dos Bombeiros Voluntários de Minde, a quem desde já enviamos o nosso muito obrigado, limpámos este algar dos seus latões.
Figura 21 - Parte da equipa e do "ferro velho", já cá fora (Foto: Marta Borges - GEM)

Topografia do Algar dos Latões

A topografia deste algar foi efetuada com os mesmos equipamentos do Algar da Marradinha II, apenas atualizámos o Topodroid no P.D.A. para a sua versão mais recente.
Figura 22a - Planta do Algar dos Latões (em formato pdf)
Figura 22b - Perfil desdobrado do Algar dos Latões (em formato pdf)
Figura 22c - Ficha de equipagem do Algar dos Latões (em formato pdf)
No decorrer dos trabalhos decidimos, e bem, fazer o levantamento 3D deste algar, como muito se tem visto por esse mundo fora e consideramos que já é o “presente” no desenho em caverna.
 
O trabalho foi efetuado por Vitor Toucinho (GEM) e Ana Pita (GEM), usando o sensor LiDAR de um iPhone 12 Pro Max com a app Polycam para captura do mapeamento e textura da cavidade, e com pós-processamento feito com o software Blender. O resultado foi um modelo 3D do algar com grande resolução que nos permite obter todas as medições com bastante precisão, como se pode ver nas figuras seguintes.
 
O próximo passo será disponibilizarmos uma visita virtual a este algar com base no modelo 3D criado.
Figura 23a - Algar dos Latões - Planta 3D
Figura 23b - Algar dos Latões - Perfil 3D
Figura 24 - Detalhe do caos de blocos na base do algar (imagem do modelo 3D)
Geologia do Algar dos Latões
O Algar dos Latões desenvolve-se nas formação dos Calcários Bioclásticos do Codaçal do andar Batoniano do período Jurássico. As camadas localmente são subhorizontais. A gruta é controlada por uma fratura de atitude aproximada N40E/Subvertical, ao longo da qual se abre a entrada da gruta. A cavidade apresenta fortes abatimentos, com os blocos que caíram do teto e paredes a cobrirem a maior parte do chão.
A cavidade ter-se-á formado na zona freática do carso, segundo a definição de Bögli, 1980, tendo posteriormente passado para a zona vadosa inativa, segundo a definição do mesmo autor. A atividade não apresenta qualquer sinal de circulação atual de água.
O Algar dos Latões terá feito parte junto com as cavidades próximas (Algar da Marradinha II, Algar das Couves, Algar do Zé de Braga e Algar das Cotovias) de um antigo coletor. Este ter-se-á formado quando o nível de base estaria mais elevado que o atual. Com a descida do nível de base ou subida tectónica dos terrenos o coletor foi abandonado pela circulação de águas e com as perdas de sustentação terão ocorrido abatimentos que seccionaram o coletor, com posterior cobertura por concreções disfarçando a origem da cavidade.
 
Conclusão
 
É interessante o Algar dos Latões, com muita vida e agora sem lixo.
 

Mais uma vez se verificou que uma boa parceria entre as autoridades locais e os espeleólogos é bem melhor num plano de conservação e divulgação deste rico património.

Obrigado.

Figura 25 - Entrada do Algar dos Latões, vista do seu interior (Foto: Paulo Lopes - GEM)
Figura 25 - Entrada do Algar dos Latões, vista do seu interior (Foto: Paulo Lopes - GEM)

Referências  bibliográficas

  • Bögli, A. (1980), Karst Hydrology and Physical Speleology, Springer-Verlag, Berlin Heildelberg New York.
  • Manupella, G., Telles Antunes, M., Costa Almeida, C.A., Azerêdo, A.C., Barbosa, B., Cardoso, J.L., Crispim, J.A., Duarte, L.V., Henriques, M.H., Martins, L.T., Ramalho, M.M.; Santos, V.F.; Terrinha. P.; (2000). Carta Geológica de Portugal – Vila Nova de Ourém, Folha 27-A, à escala 1:50.000, e Nota Explicativa, Instituto Geológico e Mineiro, Lisboa.
  • Ribeiro, José 1, Rodrigues, Paulo 1,2,(2022) Projeto Corredor Vale da Trave – Moitas Venda, https://gem.pt/1/publicacoes/artigos-carso-e-endocarso/projeto-corredor-vale-da-trave-moitas-venda/
  • Rodrigues, P. Algar do Zé do Braga- Alguns apontamentos de geologia https://nalga.wordpress.com/2019/06/15/algar-do-ze-do-braga-alguns-apontamentos-de-geologia/
  • Rodrigues, P, (2017) Revista Meandro, nº3, Alguns apontamentos de geologia sobre o Algar das Cotovias, pp 42 a 52.
  • Canais, F. & Fernandes, J. 1999. Lapas e Algares da Serra de Santo António. Subterra Grupo de Espeleologia. Torres Novas.